As manifestações de cultura, num espaço, lugar ou cidade, podem assumir várias formas e abranger diversos setores da vida cultural. Assim sendo, parece-me indiscutível que as manifestações digitais de cultura estão cada vez mais presentes nas cidades de cultura.
Quando falamos em Cultura, por vezes enfrentamos as consequências da polissemia do conceito e da palavra. Podemos referir-nos à cultura em vários contextos e entende-la de diversas maneiras. A polissemia reflete, aliás, a complexidade e a diversidade do mundo em que vivemos.
De uma forma geral, pode definir-se cultura como o conjunto de valores, crenças, costumes, tradições e artefactos, materiais e imateriais, que caracterizam um determinado grupo social. A meu ver, a cultura pode ser vista como a expressão da identidade coletiva de uma comunidade, seja ela local, regional, nacional ou internacional.
Quando abordamos a cultura num contexto mais tecnológico, ou se quisermos, organizacional, entramos no campo das normas, valores e comportamentos que, por exemplo, norteiam a conduta dos seus trabalhadores e da identidade da organização. Assim, associar neste texto “Cultura” e “Mudança Tecnológica”, exige uma clarificação e um pressuposto. Uma clarificação porque se pretende olhar para a cultura como uma dimensão fundamental da vida humana, que se manifesta em diferentes esferas da sociedade, como a política, a economia, a religião, a ciência e a tecnologia. Um pressuposto, porque a cultura é aqui entendida como processo dinâmico e em constante transformação, que se adapta às mudanças sociais e históricas, e também tecnológicas.
A cultura digital é uma parte integrante da vida moderna. Tornou-se ainda mais importante durante a pandemia da COVID-19, que impulsionou a necessidade de uma transformação digital em quase todos os setores da sociedade. A promoção da cultura digital, em cidades e lugares, é crucial não apenas para permitir que as pessoas aproveitem todos os benefícios que a tecnologia oferece, desde o acesso à informação até à criação e partilha de conteúdos, mas também das manifestações digitais de cultura, cada vez mais presentes em todo o lado, e que incluem diversas formas de expressão artística e cultural.
O advento da tecnologia digital transformou a maneira como as pessoas interagem com o mundo ao seu redor, inclusive com a cultura. As tecnologias contribuem de várias formas para a imersão cultural dos indivíduos nas suas comunidades e contextos. Cidades e lugares têm a oportunidade de promover a sua cultura de maneira mais ampla e acessível, seja através de plataformas digitais, redes sociais, mas também estimulando a criação de conteúdo digital, não apenas em blogs, vídeos, podcasts, como criar soluções personalizadas para responder às necessidades e interesses específicos da comunidade local.
Uma abordagem de como “antigas” e “novas” mídias se fundem na era digital é feita por Henry Jenkins, no seu livro "Convergence Culture: Where Old and New Media Collide". Jenkins aborda o como isso afeta a cultura popular e o comportamento das pessoas e defende que a convergência cultural está a mudar a maneira como consumimos e criamos os novos mídia. Também Jean Baudrillard, um filósofo francês que concentrou algum do seu trabalho na relação entre cultura e tecnologia argumenta que as novas formas de cultura, como a mídia e a tecnologia, estão a mudar a maneira como pensamos e vivemos. Outros autores, como Stuart Hall, Roland Barthes ou Donna Haraway também se dedicaram à reconceptualização da cultura e às novas formas de cultura.
Vivo numa cidade cultural. Évora será, em 2027, Capital Europeia da Cultura. Em tempos de Transformação Digital, é quase impossível resistir ao desafio para pensar em ideias de cultura inovadora que possam ser promovidas num empreendimento desta dimensão. Mas, mais que um desafio, é um dever. É fundamental que a cultura continue a evoluir e se adapte às mudanças tecnológicas, de modo a tornar-se cada vez mais relevante e significativa para as pessoas. É algo incontornável perante a velocidade dos tempos que correm.
Não consigo imaginar uma Capital Europeia da Cultura que não destaque o uso criativo e inovador da tecnologia na produção e disseminação da cultura. A arte e a cultura digital podem transformar espaços públicos, trazendo novas perspetivas e possibilidades para a vida urbana. Vem-me à cabeça, por exemplo, o “Lightroom”, em Londres, um edifício localizado em King's Cross, na Lewis Cubitt Square, que visitei há dias atrás. Trata-se de um showspace, projetado por Haworth Tompkins, à imagem do já existente, também londrino, Bridge Theatre. Ali encontramos um vasto espaço de tecnologia revolucionária, composto por uma série de 48 painéis de LED, que se estendem por quase 40 metros de comprimento, criando um túnel de luz e cor. Este não é apenas um espaço onde acontecem exposições de arte interativa, performances digitais imersivas, experiências de realidade virtual e muito mais. É, acima de tudo, um espaço aberto às mentes criativas do mundo. Projetos como o Lightroom incentivam a interação e a participação do público, permitindo que as pessoas se envolvam diretamente com a obra de arte e contribuam para a sua interpretação e significado.
Também imagino, em qualquer Cidade de Cultura, a possibilidade de explorar diferentes disciplinas, como arte, tecnologia, ciência e negócios, colocando-as a trabalhar juntas para criar algo novo e único, assim como a promoção da participação e do envolvimento do público, através de plataformas digitais e outras tecnologias, para impulsionar projetos de arte colaborativos, onde o público pode contribuir para a criação de obras de arte, ou programas educativos que incentivem a participação ativa dos visitantes. E como a Transformação Digital tem um grande impacto no meio ambiente, uma Capital Europeia da Cultura é também um argumento para se explorarem formas de tornar a cultura mais sustentável
A meu ver, quase todas as cidades têm hoje condições para contribuir, de várias maneiras, para a imersão cultural dos cidadãos e dos seus visitantes. Hoje temos aplicações móveis que fornecem informações sobre a história, arte e cultura da cidade, incluindo locais de interesse, monumentos, eventos culturais, exposições e até experiências de realidade aumentada, como acontece em Paris (Monument Tracker), Roma (Rome Reborn) ou Bruxelas (Brussels Augmented Reality), entre outros. A realidade virtual permite já que sejamos até transportados para outras épocas e lugares, como em Londres (Streetmuseum), ou Veneza (Venice VR Experience), permitindo aos visitantes ver a cidade de uma forma totalmente nova. A exploração do conhecimento sobre a cultura e a história dos lugares pode fazer-se hoje através de plataformas de aprendizagem online, oferecendo, como em Edimburgo (FutureLearn), ou Florença (Florence University of the Arts), tutoriais e cursos sobre a cultura da cidade, desde história e arte até culinária e tradições locais. A gamificação é uma tecnologia com um potencial incalculável para envolver os cidadãos e visitantes na cultura local, já utilizada com grande sucesso em cidades como Barcelona(BCN Game), Amsterdão(Pulse of the City) ou Copenhaga (Urban Hunt).
É importante que haja uma sinergia entre a cultura digital e todas as restantes formas e expressões de cultura. Somente dessa forma, poderemos construir cidades e lugares mais ricos e diversificados culturalmente, que sejam capazes de atrair e acolher pessoas de todas as partes do mundo. Ainda assim, para compreender a cultura digital é necessário recorrer a novas e inovadoras formas de pesquisa, e a novas abordagens, seja no amplo campo das humanidades digitais, da hermenêutica digital ou da etnografia digital, mas é uma oportunidade para avançarmos na nossa compreensão da cultura moldada pela digitalização. É também essencial continuar a apostar no acesso à Internet e às tecnologias, na inovação e no empreendedorismo digital, na aceleração da integração da tecnologia na vida urbana e na capacitação digital das pessoas, garantido que estas tenham a possibilidade de adquirir as competências necessárias para usar a tecnologia de uma forma efetiva e produtiva.