O mês de agosto era (e provavelmente ainda será para muitos) o mês de “ir a banhos”. Era também a época do ano em que os jornais se enchiam de histórias banais e relatos de atividades frívolas, especialmente relacionados com política. E agora? O que resta dessa emblemática Silly Season?
Já tive o privilégio de dormir com o mar por perto este ano. Na verdade, é o mesmo que dizer que já gozei a minha quinzena anual de praia. Alguns dias de férias que ainda restam serão usados para outras paragens, mais dedicadas à família. Muito se discute acerca do significado das férias. Muitos preferem viajar, outros partem para a aventura, há ainda os que querem desligar completamente e aqueles que apenas querem afastar-se do stress da rotina do trabalho, descansar um pouco e disfrutar de um tempo bem passado com família e amigos. Eu incluo-me neste último grupo. Levo uma espécie de escritório portátil atrás, alguns jogos e passatempos, muita música no smartphone e no leitor MP3 e algumas leituras que escolhi com antecedência. Levo ainda muita vontade de mergulhar no mar salgado e um estômago ávido de deleites gastronómicos.
Mas voltemos então à Silly Season e aos estranhos tempos que atravessamos. De ano para ano apercebo-me de uma certa generalização da estupidez, do disparate, da polarização e dos extremismos. Em apenas duas semanas, na ainda só ligeira confusão algarvia, assisti a várias "cenas" altamente disruptivas, provavelmente até comuns no quotidiano dos nossos dias, mas para as quais não temos atenção. Uma coisa é certa: não auguram bons tempos vindouros. Por exemplo, a falta de pessoas para operar na restauração (e digo operar e não trabalhar, porque trabalho pressupõe respeito pela condição laboral e humana, que ainda me pergunto se será tido em conta em certos trabalhos e contratações) está a levar a um encrespar das tensões entre clientes e estabelecimentos, cujas cenas descambam quase sempre para comportamentos de outra ordem, muitos, infelizmente, altamente atentatórios da dignidade humana e da tolerância. Outro sintoma prende-se com a lógica do “vale tudo”. Deparei-me com situações de autêntico abuso e “chico-espertice”, em que passar a perna ao outro é visto como um gesto compensatório e de sobrevivência, tudo perante a complacência da plateia que prefere defender o seu pedaço na esperança de que não se lhes atravesse um energúmeno no caminho. As conversas, por quase todo o lado, versam sobre desânimos, disputas, injustiças, problemas laborais ou sobre generalidades acerca deste tempo de incertezas e dúvidas, dando a entender que nos deixámos assolar por uma depressão coletiva e que vivemos numa espécie de selvajaria social.
Ao mesmo tempo, os órgãos de comunicação social foram relatando autênticos atentados à sobriedade, aos princípios, valores e regras que nos deveriam nortear enquanto seres humanos e seres sociais. E não foram, de certeza, típicos futilizados apontamentos da costumada Silly Season. Lembro-me, por exemplo, do caso dos insultos racistas aos filhos de um casal de atores brasileiros na Costa da Caparica, cujos pormenores não vou aqui desenvolver, porque o que quero salientar é a amplitude incendiária que o caso tomou cá dentro e lá fora. Esperemos que sirva para se aprofundar um pouco mais a reflexão sobre este flagelo. Outras transgressões aos direitos das pessoas preenchem também, infelizmente cada vez mais, as primeiras páginas de jornais, como a discriminação de pessoas com deficiência ou contra as diferenças religiosas. Também a corrupção, ou casos suspeitos desta, foram protagonistas principais das parangonas dos jornais e dos horários nobres das televisões, com o comissário europeu da Justiça, Didier Reynders, a alertar Portugal para a necessidade de tornar o sistema judiciário mais ágil e transparente na luta contra a corrupção. Já a cidadania revela continuar em maus lençóis, sendo, ao invés de uma discussão urgente e absolutamente necessária, transformada em casos de um caso que nunca deveria ter sido transformado num caso. Já no que a aeroportos respeita, o que não faltaram foram relatos do pandemónio dos cancelamentos de voos, mas, mais deprimente, é continuarmos a assistir a discussões políticas velhinhas, velhinhas, como as relacionadas com o novo aeroporto, que já vai com meio século, ou seja, quando eu nasci já se dizia mais ou menos o mesmo do que ainda hoje se discute. Eis-nos numa velha realidade de desmandos, agora evidenciados como retrocessos.
O que se passa connosco? O que está a acontecer em Portugal, e no mundo, que nos está a transformar em indivíduos cada vez mais distraídos, indiferentes, frios e individualistas? Onde nos levará este novo desporto nacional do “quero lá saber”? Fico impressionado e preocupado com alguns indícios perigosos que vão já muito além de apenas notícias sensacionalistas ou de propaganda populista. E não! Não são apenas a invasão da Ucrânia, a falta de cereais, o aumento dos combustíveis ou o escalar da inflação que têm a culpa. O problema está também em cada um de nós, na forma como nos organizamos em sociedade e na complacência com que reagimos hoje à inércia, à entropia e à incompetência, seja dos atos displicentes de quem toma decisões, seja dos que hipotecam o seu amanhã junto de outros para quem outros valores menos altos se levantam.
A nível individual, para onde quer que olhemos vemos coisas incompreensíveis como atos de intolerância, falta de solidariedade e de generosidade. É horrível constatar como tem galopado, por exemplo, o sentimento de satisfação perante o dano ou infortúnio do outro, o chamado schadenfreude, se quisermos recorrer ao empréstimo linguístico da língua alemã. A nível coletivo deparamo-nos com uma complexidade brutal daquilo que ocorre na sociedade. O isolamento das pessoas, a desvalorização do trabalho, o desinteresse pela política, o renegar da cidadania e a ascensão dos extremismos, entre tantos outros sinais, transvertem o mundo para algo novo.
É impressionante observar o que acontece quando nos distanciamos dos problemas, ou daquilo a que chamamos, no nosso dia-a-dia, problemas. À medida que nos envolvemos noutras atividades da vida, constatamos a estranheza que se abate sobre o nosso modus vivendi e como as novas aprendizagens feitas fora da comezinha rotina se tornaram muito mais complexas, exigindo muito mais de nós, individualmente e coletivamente.
Nesta minha estranha Silly Season aproveitei para aprofundar algumas ideias e tentar perceber um pouco mais sobre alguns fenómenos sociais. Algumas leituras ajudaram à reflexão. Outras demonstraram uma assustadora realidade acerca do que nos espera no futuro. Jean d' Ormesson, o filosofo francês falecido em 2017, sugere uma evocação do credo quia absurdum, de Santo Agostinho, que significa "Eu acredito porque é absurdo". No seu livro O Mundo é Uma Coisa Estranha, Afinal percorri quase todos os construtores daquilo que somos hoje. Escrito como um “romance da vida”, passei por Homero, Sócrates, Newton, Darwin, Einstein e alguns outros, ainda que um pouco mais apressadamente, como Nietzsche ou Spinoza. Em O Século da Solidão, um magnífico livro sugerido por um amigo, Noreena Hertz ajudou-me a compreender como chegámos a um mundo solitário, e como uma pandemia acelerou o problema. A filosofa, considerada uma das grandes pensadoras da atualidade, através de um relato ousado, esperançoso e instigante, mostra como a solidão se tornou a condição definidora do século XXI, com prejuízos para a nossa saúde, riqueza e felicidade, ameaçando mesmo a nossa democracia. A autora fala ainda dos flagelos provocados pela tecnologia desumanizante, pelo planeamento sem imaginação e pela austeridade, tornando a humanidade numa horda de indivíduos infelizes, insalubres e hostis. Visitei também o tema da complexidade, nas obras de Daniel Innerarity, catedrático em Filosofia Política e Social na Universidade do País Basco. Com uma perspetiva distinta sobre a atualidade, o filosofo que defende que uma crise é “um momento excecional em que podemos valorizar questões da própria sobrevivência”, propõe uma abordagem mais exigente para fazer face aos problemas das nossas novas sociedades. Em Uma Teoria da Democracia Complexa, Innerarity defende que é imperativo encarar a complexidade e aumentar a exigência relativamente às decisões políticas, que deverão ser sustentadas em ideias e conceitos sólidos.
O que é comum, a todos estes autores que enunciei, é o apelo à urgência de estratégias para que nos possamos unir novamente em torno de soluções, assim como a necessidade de superar divisões nestes tempos marcados por grandes mudanças e ruturas. Quero acreditar que pessoas e governos têm a oportunidade de se reconstruirem, sobre linhas melhores. Recordo uma citação de Oscar Wilde: “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. São estes, indivíduos ainda livres, resistentes a tornarem-se apenas seres vaidosos e imbecis, que ajudarão a superar as nossas muitas divisões, no momento de grandes mudanças e ruturas que atravessamos.
Que este quente mês de agosto nos permita a todos reforçar as energias para voltarmos com mais força e atitude. Porque, como dizia o nosso poeta António Aleixo, todos sabemos raciocinar e “só os burros estão dispostos a sofrer sem protestar”. O tempo da culpa ser sempre dos outros acabou. Nesta estranha Silly Season, ninguém ficará isento de deveres, principalmente do dever de lutar pela sua dignidade e pela dignidade dos demais.