Um dos temas sobre o qual gosto de escrever prende-se com a Literacia Digital, ou, na verdade, com a falta dela. Mas, neste “delírio”, vou desviar-me para outra literacia, cuja carência parece ser clara em muitas situações quotidianas. Refiro-me à Literacia Jurídica e, em particular, à questão do registo de imagens no espaço público.
Vivemos numa época em que tudo está relacionado. E, quando temos hoje uma sociedade completamente digitalizada, onde quase todos estamos (voluntariamente, mas também, tantas vezes, involuntariamente) na Rede, em particular nas Redes Sociais ou na Internet, é aconselhável alguma preocupação com direitos e deveres, o que por sua vez implica algum conhecimento das molduras legais de determinadas situações.
Hábito numa cidade monumental, cheia de lugares públicos que atraem visitantes de todo o mundo. É também uma cidade cheia de gente, com poucas centralidades, levando a que as principais ruas e praças estejam quase sempre preenchidas de vida. Évora é ainda uma cidade académica, com tradição de convenções e rituais de integração social de novos alunos nas comunidades estudantis universitárias, sendo bastante popular nesta altura as Praxes, que se realizam por todo o espaço público do Centro Histórico.
Por estes dias vão-se levantando dúvidas acerca de algumas ações, relacionadas com as atividades no espaço público, especialmente entre os protagonistas mais presentes. Por um lado cidadãos estrangeiros, ou de outros locais de Portugal, correm as ruas, munidos de máquinas fotográficas ou smartphones, disparando sobre as maravilhas de uma cidade Património da Humanidade, cheia de coisas belas, tantas delas fazendo também parte de um vasto e riquíssimo conjunto de riquezas imateriais. Por outro lado, e até ao primeiro de novembro, Dia da Universidade de Évora, grupos enormes de estudantes, engalanados com o seu traje académico, correm as ruas com os gritos de “guerra”, fazendo-se acompanhar dos “bichos” dos respetivos cursos, dando à cidade cores e sons únicos, que atraem a atenção de locais e visitantes.
Voltando ao que me trouxe ao tema, neste pulsar da cidade surgem quase sempre questões relacionadas com as fotografias. Podem ou não podem as praxes ser fotografadas? Alguns cidadãos têm sido impedidos por estudantes de fotografar as atividades de Praxe, que ocorrem no espaço público, com a afirmação: Não pode, é proibido! E a questão que levanto é: Será?
Estamos aqui, no Portugalis, fórum onde promovemos e divulgamos um país de uma riqueza turística e cultural enorme, e onde se faz uma apologia ao lazer e ao bem-estar de quem cá vive e nos visita. Mas a promoção e divulgação dos locais é também feita por cada um de nós, recorrentemente através da imagem, hoje quase sempre difundida através das redes digitais e da Internet, como por exemplo Facebook e Instagram, no sentido de levar os lugares e as tradições mais longe. Faz, assim, sentido refletir sobre potenciais conflitos entre a captação de imagem e a nossa privacidade, assim como sobre o direito à reserva da vida privada de cada um. Sobre Literacia Jurídica, a que me referi anteriormente, coloco aqui o foco nas colisões entre, por exemplo, o direito à imagem e outros direitos.
Quando alguém diz, sobre determinada situação ou ato, não ser possível porque é proibido, parte-se do princípio que existe um enquadramento legal para essa afirmação. Não devendo, nem sequer podendo, entrar nas questões jurídicas mais concretas porque não sou jurista, posso dar aqui a minha opinião fundamentada na interpretação que faço da legislação em vigor, assim como no que está escrito por alguns autores. Sei que “é dos livros” que existem diferenças entre o Direito Público e o Direito Privado. Enquanto no Direito Público “só pode ser feito o que está escrito em lei”, no Direito Privado pode fazer-se “tudo o que não está proibido na lei”. O caso em observação, sobre ser proibido (ou não) fotografar em local público, remete-nos para o Direito Privado, ou seja, para o conjunto de normas jurídicas que regulam as relações privadas.
Devo referir que alguns aspetos, relacionados com a captação e publicitação de fotografias por parte de não profissionais, podem ainda ter algum vazio legal. Mas o ordenamento jurídico português tem, ainda assim, os preceitos legais suficientes para a análise que nos interessa aqui clarificar. A Constituição da República Portuguesa (CRP), diploma fundamental que rege a nossa vida em sociedade, cúpula do nosso sistema jurídico, reconhece, no seu artigo 42.º, a liberdade de criação cultural, seja ela intelectual, artística e científica, e garante a proteção legal dos direitos de autor. Há, desde logo, o direito reconhecido a qualquer cidadão de criar imagens artísticas desde que esse direito não conflitue com outros direitos. Ainda na CRP encontramos o artigo 37.º que versa acerca da “Liberdade de expressão e informação” e que determina no seu n.º 1 que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. No n.º 2 do mesmo artigo, pode ler-se de modo perentório que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.
Mas a Lei Magna alerta também para contingenciais excessos, fazendo referência a infrações cometidas no exercício dos direitos referidos anteriormente, submetendo-os a princípios gerais de outras classes de direito, criminal, por exemplo, referindo-se neste caso ao “direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.
Neste trajeto, e porque a liberdade de expressão através da imagem pode colidir com os direitos de outros cidadãos, sou levado ao Código Civil para observar as questões do direito à imagem. O Artigo 79.º, dedicado especificamente a esse tema, refere no seu n.º 1 que “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela”.
Por outro lado, o n.º 2 do mesmo artigo deixa claro que “não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, (…) finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”.
Dos casos que se vão debatendo, por vezes geradores de controvérsias mais acesas, parece existir muita confusão entre conceitos e alguma desadequação dos contextos. Uma das coisas que salta à vista é a distinção na lei entre “retrato” e “imagem”. A própria palavra “fotografia” é polissémica, dado que hoje pode conter em si mesma vários sentidos. Poder-se-á ainda questionar a evolução dos tempos e da tecnologia e, por exemplo, se seremos hoje todos “fotógrafos” desde que munidos com um equipamento que registe imagem, como é o caso de um smartphone. Mas vou partir do princípio que sim.
Manuel Vilar de Macedo, jurista e fotógrafo amador, tem escrito sobre estas diferenças e sobre as interpretações da lei no seu blog http://numerofblog.wordpress.com. Refere que “quando a lei usa a expressão «retrato», está claramente a prever a imagem fotográfica de uma pessoa em concreto, sendo o objetivo do fotógrafo retratar exatamente essa pessoa, e não o que a rodeia”. Macedo acrescenta ainda que “na fotografia de rua não é nada disto que acontece, porque as pessoas não são retratadas: elas caem no enquadramento, pelo que se aplica a exceção prevista no n.º 2 do preceito legal do artigo 79.º do Código Civil”.
Sou levado a concluir, nesta opinião percecionada da leitura da legislação, que a questão do registo de imagens no espaço público tem, na verdade, um enquadramento claro à partida, podendo, em caso de comportamentos inadequados ou atentados à reputação, quer por parte dos “fotógrafos”, quer dos fotografados, ou ainda do uso indevido das imagens captadas, tornar-se mais complexo e obrigar a uma incursão por meandros mais técnicos e profundos da legislação. Daí concordar com Macedo quando refere que “a fotografia de pessoas, dentro das condições previstas no artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil, em locais públicos, é livre e não depende de autorização ou consentimento das pessoas fotografadas. A pessoa fotografada não tem, ao contrário do que alguns erroneamente pensam, direito a exigir que o fotógrafo apague a fotografia ou, no caso da fotografia analógica, lhe entregue o rolo”.
Vivemos num mundo cada vez mais complexo, que nos leva tantas vezes a questionarmos a vantagem da troca da nossa liberdade por regulação da nossa vida pública e privada. Somos cada vez mais dominados pela imagem. Somos fotografados e filmados em muitos locais, como transportes públicos, bancos e repartições, em locais vigiados, expomo-nos nas redes sociais e em sites Internet. Mas há leis, e estas devem ser cumpridas por parte de todos. Por isso vale a pena aquele que será o pequeno investimento no conhecimento dos assuntos e na melhoria da nossa cidadania, enquanto seres que convivemos em sociedade.